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A ignorância é uma benção?

Por: Raphael Rocha Lopes

17/09/2025 - 07:09 - Atualizada em: 17/09/2025 - 07:10

“♫ Oh, boi/ O povo foge da ignorância/ Apesar de viver tão perto dela/ E sonham com melhores tempos idos/ Contemplam essa vida numa cela/ Esperam nova possibilidade/ De verem esse mundo se acabar/ A arca de Noé, o dirigível/ Não voam, nem se pode flutuar” (Admirável gado novo – Zé Ramalho).

Há quem diga que a ignorância é uma bênção. E, de fato, durante muito tempo, a limitação de informações fazia com que as pessoas simplesmente não soubessem e não se responsabilizassem por tudo o que acontecia ao redor. Era possível viver em bolhas pequenas, sem grandes choques, acreditando apenas no que vinha da boca dos mais velhos, de uma autoridade local ou das páginas de um jornal regional. Não havia espaço para tanta dúvida, nem tanto confronto. O mundo parecia menor, mais simples, mais previsível.

Não saber é bom em muitos aspectos. Não dói, não gera aquela sensação de culpa, não incomoda.

Mas a internet veio para rasgar esse véu. De repente, qualquer um de nós pode acessar, em segundos, bibliotecas inteiras, estudos científicos de ponta, cursos das melhores universidades do planeta, dados oficiais de governos, relatos de pessoas em tempo real, de qualquer lugar do mundo. Se antes a ignorância era imposta pela falta de acesso, hoje ela se tornou, em muitos casos, uma escolha. E é aí que mora a responsabilidade.

Fingimento, preguiça ou autocabresto

Não dá mais para fingir que não sabíamos. Não dá mais para dizer que não existem alternativas de informação. A internet trouxe a bênção do conhecimento, mas também a maldição de não podermos nos esconder da verdade. Ao mesmo tempo em que podemos nos aprofundar em qualquer tema, também estamos diante da obrigação de filtrar, selecionar e compreender o que realmente tem valor. Porque o excesso de informação pode ser tão nocivo quanto a ausência dela.

Mas não saber, hoje em dia, para a parte da população que se diz ou se sente esclarecida, é fingimento, preguiça ou autocabresto.

Por outro lado, não basta mais alfabetizar crianças e jovens para ler e escrever. É preciso alfabetizá-los digitalmente: ensiná-los a identificar fontes confiáveis, a questionar discursos prontos, a perceber manipulações e vieses, inclusive os escondidos nos algoritmos das plataformas. Não se trata apenas de proteger a nova geração das fake news, mas de capacitá-la a exercer cidadania plena em um mundo onde a linha entre fato e opinião se tornou turva.

Paradoxos e responsabilidade

A transformação digital, nesse contexto, é paradoxal. Ao mesmo tempo em que amplia horizontes, pode estreitá-los. Enquanto oferece uma multiplicidade de perspectivas, também empurra indivíduos para dentro de câmaras de eco, onde só se ouvem as próprias convicções. É por isso que a internet exige mais maturidade coletiva do que qualquer outra invenção anterior. O mundo já não é pequeno: está todo diante dos nossos olhos, na palma da mão. A questão é o que fazemos com isso.

A ignorância, outrora inevitável, podia até ser confortável. Mas hoje, escolher não saber é abdicar da responsabilidade de ser cidadão. É se recusar a usar o poder que temos de construir sociedades mais justas, conscientes e plurais. O futuro da educação digital e da transformação social depende dessa tomada de consciência: não basta acesso, é preciso preparo. Não basta informação, é preciso sabedoria.

No fim das contas, talvez a verdadeira bênção não esteja na ignorância, mas na possibilidade de escolher a responsabilidade. Porque o conhecimento, quando bem usado, pode incomodar, mas também pode libertar.

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.