A aprovação da regulamentação da reforma tributária, na Câmara dos Deputados, foi uma prova clara da força do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), e do seu modelo de encaminhamentos apelidado de “trator”. Menos de 24 horas após o grupo de trabalho responsável ter apresentado o texto de mais de 500 páginas, o projeto avançou com placares largos, atendendo a interesses políticos, eleitorais e de setores econômicos influentes representados por frentes parlamentares – apesar da rejeição vinda, sobretudo, das bancadas do PL e do Novo.
Toda a sessão de votação histórica foi conduzida de forma acelerada, com o ritmo ditado pelo rígido controle de Lira, em estreita articulação com líderes partidários e retirada de entraves regimentais. O texto agora seguirá para análise do Senado.
A aprovação da reforma é estratégica para Lira, que fez dela uma prioridade absoluta, para transformá-la em um dos principais legados de sua gestão à frente da casa legislativa, que se encerra em fevereiro de 2025.
O tema já vinha sendo discutido sem avanços no país há mais de três décadas. Logo no começo do dia, Lira tentou acordo com Jair Bolsonaro (PL) para que a bancada do partido dele não impedisse a votação do projeto chamado pelo ex-presidente e seus aliados de “a reforma do PT”.
Após conseguir encaminhar a votação, Lira disse: “Mais importante do que essa polarização é a reforma que a gente entregou para o país.” Nos bastidores, o presidente da Câmara continuou investindo na candidatura de Elmar Nascimento (União Brasil-BA), seu preferido para sua própria sucessão.
Ao longo da sessão de votação foram protocoladas quatro versões do texto. “A 30 segundos de abrir o painel de votação, novo texto da reforma foi protocolado. Aberta a votação, quase nenhum deputado sabia o que estava votando”, protestou Marcel Van Hattem.
Grupo de trabalho buscou consensos até o último minuto da votação em plenário
A aprovação mediante consensos construídos em plenário consagrou um modelo de Lira na qual, em vez de tramitar por comissões temáticas, onde blocos partidários são representados de forma proporcional ao plenário, a matéria foi discutida em um grupo de trabalho sem regras claras de funcionamento.
O colegiado integrado pelos deputados Reginaldo Lopes (PT-MG), que foi o relator do projeto, Augusto Coutinho (Republicanos-PE), Claudio Cajado (PP-BA), Hildo Rocha (MDB-MA), Joaquim Passarinho (PL-PA), Luiz Gastão (PSD-CE) e Moses Rodrigues (União Brasil-CE) se incumbiu de selar consensos.
Com o empurrão da bancada do agronegócio, a mais poderosa na Câmara, a votação de emenda apresentada pelo PL para isenção da carne obteve o apoio de 477 deputados – o equivalente a 93% do plenário. Foram 480 votos no texto-base, 336 favoráveis e 142 contrários. O texto final fixa as regras do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto Seletivo (IS).
Só os sete membros do grupo de trabalho participaram das negociações para a elaboração do texto, que passou por 22 audiências e 231 mesas de diálogo, em 218 horas de conversas com 1.344 representantes de governos e setores econômicos. O acerto do colégio de líderes acabou, contudo, mudado pela pressão do público e lobbies.
Segundo analistas, o número expressivo de votos na emenda de inclusão das proteínas animais na cesta básica revela também o receio de deputados com a exposição de votos contrários a uma proposta com apelo popular, sobretudo em ano eleitoral.
O relator anterior da reforma na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), articulou ostensivamente a inclusão da carne na cesta básica, argumentando que a relação de seus produtos já tinha sido ampliada de forma exagerada para agradar lobbies empresariais. Ao final, ficaram 18 itens contemplados.
Além disso, os deputados excluíram armas e munições do chamado Imposto Seletivo (IS), ou “imposto do pecado”. Na prática, produtos dentro dessa categoria pagariam mais impostos para compensar concessões feitas na reforma e para desestimular seu consumo, em consonância com políticas públicas específicas, como o desarmamento.
Essa exclusão revelou a influência da bancada da segurança pública, que tem se articulado com as outras bancadas conservadoras, a evangélica e a agropecuária.
Para o deputado governista Pedro Campos (PSB-PE), o mais importante é ter feito a reforma e dado um impulso à economia no longo prazo. “As estimativas dos economistas indicam que, nos próximos 10 a 15 anos, o Brasil poderá crescer mais de 10% do PIB, podendo chegar a 20% após o fim de seu manicômio tributário”, disse.
Por outro lado, deputados da oposição criticaram o conteúdo e o processo de tramitação da proposta, alegando que não houve participação ampla da sociedade nas discussões. A líder da minoria, Bia Kicis (PL-DF), afirmou que a reforma tributária não simplificará o sistema nem trará clareza e alívio para o contribuinte. “Metade da reforma é composta por exceções ao texto, porque o texto é muito ruim”, criticou. Apesar disso, ela festejou a aprovação da emenda que isentou a carne.
Para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que se dedicava a reduzir a lista de produtos beneficiados, sobretudo na isenção das carnes, prevaleceu, apesar da contrariedade, a meta da equipe econômica de aprovar a mudança no sistema tributário de qualquer forma. O objetivo passou a ser concluir a regulamentação dos novos impostos sobre o consumo no Congresso ainda em 2024 para poder adentrar, na sequência, sobre a tributação sobre a renda.
Ministério da Fazenda alerta para o risco de exceções elevarem a alíquota média
Mesmo com a derrota para o governo na desoneração das carnes e peixes, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), elogiou Lira pelo empenho na votação da regulamentação da reforma, afirmando que a decisão final cabe ao Congresso. Mas sublinhou que os parlamentares não podem alegar falta de dados sobre os impactos tributários, especialmente no setor de carnes.
Haddad também tem alertado para o fato de que cada nova exceção à regra fará com que a alíquota padrão tenha que ser mais alta. Ele tinha sugerido ampliar a devolução de impostos em dinheiro (cashback) como alternativa para desonerar carnes aos mais pobres, tese que não avançou.
Quando o projeto de lei complementar foi encaminhado pelo Executivo, o Ministério da Fazenda estimava a taxa em 26,5% − patamar já considerado elevado e que alimentava críticas de adversários políticos. Além de setores favorecidos por alíquotas reduzidas, foi aprovada a relação de itens da Cesta Básica Nacional, com alíquota zero, incentivos à Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio e regras de transição e constituição dos fundos de compensação.
Com preocupações eleitorais, Lula por outro lado, passou a defender publicamente a inclusão de frango e alguns cortes de carne mais consumidos pela camada mais pobre da população na lista de produtos isentos da CBS e do IBS.
Ao final, a queda de braços em torno da isenção de imposto para as proteínas animais resultou na alíquota zero também para todos os tipos de queijos. Especialistas alertam que essa decisão deve elevar a alíquota média, prejudicando a população, especialmente a menos favorecida.
“O teto de alíquota de 26,5% é um delírio, colocado apenas para gerar manchete de jornal”, disse o tributarista Luiz Gustavo Bichara à CNN Brasil.
Debate sobre distribuição da carga tributária continua, diz especialista
O cientista político Leonardo Barreto, diretor da I3P Consultoria, destaca que a regulamentação das alíquotas no projeto aprovado na quarta-feira (10) reflete o embate distributivo no país, determinando quem contribuirá com quanto. Nesse sentido, a definição da calibragem da carga tributária está por ser definida.
“De todo modo, o debate de um limite à carga tributária está posto. É consenso entre muitos atores que circulavam no Congresso durante a votação que o Imposto Seletivo, que deveria ter fins regulatórios, para desestimular comportamentos, tem embutido finalidade arrecadatória, acrescentado setores que não tem nada a ver com hábitos de consumo”, observou.
* Informações da Gazeta do Povo.