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Portadores da Síndrome de Burnout têm direito ao auxílio-doença; saiba como identificar o problema

Foto: Pixabay

Por: Elisângela Pezzutti

27/04/2024 - 07:04

Em janeiro de 2022, a Síndrome de Burnout, também chamada de Síndrome do Esgotamento Profissional, foi incorporada à lista das doenças ocupacionais reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Com isso, as pessoas diagnosticadas passaram a ter as mesmas garantias trabalhistas e previdenciárias previstas para as demais doenças do trabalho. Isso significa que se um segurado do INSS ficar incapacitado para o trabalho por mais de 15 dias devido à Síndrome de Burnout, ele tem direito ao auxílio-doença acidentário, que garante a estabilidade provisória, ou seja, ele não poderá ser dispensado sem justa causa nos 12 meses após o seu retorno.

No Brasil, a síndrome tem o código QD85, dentro da CID-11 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde).

Para falar sobre o assunto, o Jornal OCP entrevistou o Psicólogo Ricardo Paulino dos Santos, mestrando em Filosofia (UFSC), especialista em Psicologia Clínica (ACE – Joinville), graduado em Psicologia (Unisociesc) e Engenharia Mecânica (UFSC).

A relação de Ricardo com o Burnout vem de duas experiências: acadêmica, já que ele pesquisou sobre o assunto durante sua graduação em Psicologia – seu TCC resultou em um artigo intitulado “Hipermodernidade e a Síndrome de Burnout: Uma reflexão sobre o trabalho na contemporaneidade”, e também porque Ricardo sentiu o problema na pele. “Não tive um diagnóstico formal, mas apresentei sintomas”, conta.

Acompanhe a entrevista e saiba como diferenciar o estresse normal do dia a dia e a Síndrome de Bornout!

OCP: Ricardo, como foi a sua experiência com o diagnóstico de Burnout?
Foi uma péssima experiência em vários sentidos. Na época não consegui nomeá-lo. Dito de outra forma, não fui diagnosticado. Mas consigo pensar em um processo crescente de piora e mal-estar ao longo de tempo. De início, um estresse elevado devido a demandas diferenciadas, uma certa ausência de prazer nas atividades, acompanhadas por uma certa impaciência na execução e no relacionamento interpessoal, seguidos de um certo distanciamento, cinismo e ironia nos bastidores, mas ao mesmo tempo acompanhado de culpa pela queda de desempenho. Finalmente, um sentimento de impotência, tristeza e sintomas psicossomáticos como depressão, ansiedade e crises de pânico.
Por um lado, me via altamente desmotivado a ir trabalhar, no sentido de um sofrimento antecipado, notadamente aos domingos, no final do dia. Não sem motivo as crises de pânico vinham nas segundas de manhã, o que me fizeram ligar o alerta e conversar com meu superior sobre um eventual acordo de desligamento.

OCP: Quais eram as circunstâncias da sua vida naquele período, onde morava e que idade você tinha?
Eu tinha 39 anos, morava em Jaraguá do Sul e ocupava um cargo de responsabilidade e confiança, com relativa estabilidade na empresa que trabalhava. Ao mesmo tempo já tinha planos de fazer transição de carreira, fazia três anos que estudava Psicologia e eu e minha esposa estávamos tentando engravidar da nossa minha primeira filha.

OCP: Você conseguiu perceber logo o que estava acontecendo?
Não foi rápido, nem óbvio. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Não tinha nenhum conhecimento específico sobre o assunto. Só sabia que aquele ambiente me trazia sofrimento, incluso os psicossomáticos, e queria muito me afastar dele.

OCP: O que você fez para superar o problema e voltar a ter uma vida “normal” e produtiva?
Não sei dizer. Foi uma época complicada, um pouco antes do início da pandemia e eu estava desempregado. Tinha reservas financeiras, então consegui me dedicar à família nesse período e me distanciei do trabalho remunerado. Hoje estou muito satisfeito com meus trabalhos, estudos e as minhas demandas produtivas.

Foto: Arquivo pessoal

OCP: Como distinguir o estresse normal do dia a dia de algo mais sério?
A grosso modo, pela maneira como você lida/percebe esse estresse. Se for algo que não seja tão frequente, em que consiga se recuperar, descansar e se sentir motivado a novos desafios no seu ambiente de trabalho, podemos dizer que é um estresse benéfico. É importante salientar que a Síndrome de Burnout não pode ser simplesmente associada à fadiga ou exaustão emocional, pois existem outros eixos estruturantes. Os pesquisadores também enfatizam que o Burnout advém especialmente sobre uma condição de desequilíbrio entre ‘demandas versus recursos’ e ‘expectativa versus realidade’, em que os níveis de demandas e expectativas superam os recursos e a realidade e impedem o indivíduo de se adaptar à situação. Em decorrência, os indivíduos desenvolvem uma gradual perda de energia, de comprometimento e de esperança, gerando prejuízos à produtividade e à satisfação laboral. Por essa via seguem explorando dois eixos principais: as condições ambientais e laborais e as características dos indivíduos ali expostos. Nesse sentido, há condições laborais onde os trabalhadores estão mais propícios a desenvolver Burnout. Isso vai desde a cultura da empresa, modelos de liderança, tipos de função, formas de violência (assédio, agressividade) no ambiente de trabalho, até características pessoais, como personalidade, gênero, classe social, locus de controle (a crença que uma pessoa possui de poder ou não controlar os eventos de sua vida), estratégias de coping (conjunto de esforços cognitivos e comportamentais, utilizado pelos indivíduos com o objetivo de lidar com demandas específicas, internas ou externas, que surgem em situações de estresse e são avaliadas como sobrecarregando ou excedendo seus recursos pessoais) e situacionais (tipos de função, escolaridade). Tudo isso interfere no desenvolvimento da síndrome. Um exemplo: pessoas insatisfeitas com seu trabalho e que possuem a percepção de ter uma condição de saúde ruim são mais propícias a desenvolver o Burnout.

OCP: Como evitar chegar a esse ponto?
De um ponto de vista simples e prático penso que é estar atento aos sinais do seu próprio corpo. Sensação de fadiga constante e desinteresse crescente são alertas importantes. Sintomas psicossomáticos, como ansiedade, pânico e depressão também são marcadores importantes. Do ponto de vista ideal, uma vida equilibrada obviamente ajuda. Isso inclui alimentação balanceada, exercícios físicos regulares, um trabalho que ofereça satisfação e equilíbrio com as outras áreas da sua vida (saúde, família, finanças, tecnologia, etc.).

OCP: Ainda existe certo estigma com esse tipo de doença? Ela ainda é vista como “frescura” ou você acha que essa mentalidade já está mudando?
Acho que sua pergunta já nos diz bastante coisa. Penso que sim, muitas pessoas ainda consideram “frescura”, mais por desconhecimento do que por má-fé. Como se trata de um fenômeno relativamente novo, ele é permeado por estigmas dos mais diversos. Embora as pesquisas científicas nessa área não sejam novas – já são mais de 40 anos de estudo -, ainda são pouco divulgadas e apreendidas pelo grande público. Mesmo dentro do ambiente acadêmico há várias maneiras de se abordar o tema. O meu estudo visava uma crítica justamente ao modelo majoritariamente médico, muito ligado a uma concepção sintomatológica centrada na pessoa ou no ambiente de trabalho. As empresas que tratam do tema entram na discussão timidamente por esse modelo médico/jurídico. Penso que a questão é muito mais complexa, sociológica, passando por modelos de crítica à própria subjetividade que emerge junto ao Neoliberalismo. Dito de outra forma, o Burnout é um novo tipo de doença generalizada dos nossos tempos, enquanto sociedade da informação, usando o conceito do Filosofo Byung-Chu Han. Estamos avançando, mas ainda temos muito que estudar, aprender e discutir sobre esse fenômeno.

Leia a seguir a introdução adaptada do artigo do Psicólogo Ricardo Paulino dos Santos (@ricardopsis):

HIPERMODERNIDADE E A SÍNDROME DE BURNOUT: UMA REFLEXÃO SOBRE O LUGAR DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE

A contemporaneidade ¹ é marcada por contradições e ressonâncias, onde o projeto (neo) liberal, impulsionados por uma economia de mercado globalizante, convive com a forma como as populações absorvem os impactos desse projeto. Lipovetsky (2004) afirma que a hipermodernidade é caracterizada pelo processo desestabilizador da globalização acompanhada da demanda de uma eficácia individual cada vez maior. Essa fase é marcada por uma busca ampliada de satisfação dos desejos, do culto à subjetividade e da indiferença, na emergência de um novo individualismo que tem como motor a lógica do consumo. Esse sujeito, frente a precariedade do estado e do trabalho, enfrenta agora, sozinho, uma ruína psicológica frente a um contexto de incertezas.

Nesse cenário sociológico, as incertezas acabam sendo materializadas na forma de um “Capitalismo Soft”. Bauman (2001), comentando o ensaio de Thrift (1997), discorre sobre uma mudança de vocabulário e do quadro cognitivo que marcam a nova elite global e extraterritorial. Novas metáforas emergem em formas mais leves e fluidas, não se fala mais em “engenharia”, “controle”, “liderança” e “gerência”, mas sim de “dançar”, “surfar” e “redes de influência”. Ocupam-se de formas mais leves de estrutura, que possam dar contas de mudanças rápidas, sem aviso prévio. Possuem um elemento de desorganização deliberadamente embutido, quanto mais fluido, melhor. Sennett (2006) destaca ainda que a crescente flexibilização conduziu a uma intensificação do trabalho e a precarização das relações trabalhistas.

Nesse contexto emerge um indivíduo característico da modernidade líquida, que sem uma necessidade de homogeneização, se torna a lei universal, ou seja, agora todos devem ser indivíduos distintos através de seus próprios recursos. Porém, atravessados por uma liquefação de todos os valores, o sujeito se individualiza através do consumo, que assume papel central na construção do self. Todavia, o consumo é passageiro e se esvai com o desejo, sendo assim o indivíduo também se torna móvel e flexível (Bauman, 2005).

Todas essas mudanças atingem diretamente as construções das identidades e na maneira como o sujeito operacionaliza a realização de seus desejos através do trabalho e do consumo, o que acaba refletindo também em sua saúde. Han (2017a), ao pensar as consequências do “dever” fazer, da flexibilização, na multitarefa como regra do que chama de capitalismo “informacional”, no aparecer e estar em evidência como norma da sociabilidade nas redes sociais, chega à conclusão de que vivemos na atenção profunda de tudo fazer, de buscar sempre o novo, e o resultado esperado disso é um sujeito cansado e deprimido.

Emerge assim o “burnout”, que tem sido um dos tópicos mais investigados na área de Psicologia da Saúde Ocupacional e que foi incluído na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) lançado em 2019, atualizado em 2022, sob o código QD85 (WHO, 2019). Para fins de diagnóstico existem quatro concepções teóricas acerca de sua etiologia: clínica, sociopsicológica ou psicossocial, organizacional, sociohistórica (Murofuse et al., 2005). De acordo com Maslach, Schaufeli & Leiter (2001), o que tem emergido na maioria das investigações atualmente é a definição de Burnout como um fenômeno psicossocial que ocorre como uma resposta crônica aos estressores interpessoais ocorridos na situação de trabalho. Estresse é a reação que um indivíduo produz diante de uma inespecífica situação estressora. A resposta pode ser benéfica (eustress) ou nociva (distress), dependendo de como o indivíduo a percebe (Le Fevre et al, 2003).

A síndrome de burnout (SB) é definida, a partir dessa perspectiva, por três eixos estruturantes: (1) dimensão exaustão emocional (EE), evidenciada por sentimentos de fadiga, esgotamento físico e emocional; (2) despersonalização (DP), em que o indivíduo “coisifica” e se distancia das relações interpessoais; e (3) dimensão baixa realização profissional (RP), em que o profissional supre sentimentos negativos de si mesmo (Maslach, 2009).
A síndrome provoca numerosos danos à saúde emocional e física dos trabalhadores, como irritabilidade; desenvolvimento de humor depressivo; fadiga; redução da autoestima; ideais suicidas; agressividade; alterações de memória e concentração; dores musculares; distúrbios do sono e sexuais; úlcera; comprometimento imunológico, cardiovascular e hormonal; isolamento social; aumento do consumo de drogas e desilusão (World Health Organization,2010; Maslach, 2009).

Han (2017b) teoriza que cada época possui suas enfermidades fundamentais. Ou seja, visto da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido mais como bacteriológico ou viral como em épocas anteriores, mas neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno de atenção com hiperatividade (TDAH) e a síndrome de Burnout (SB) invadem a atmosfera patológica. Não são infecções provocadas pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas sim infartos, frutos do excesso de positividade. O autor associa o sujeito hipermoderno ao “sujeito de desempenho”. Ao contrário do sujeito de uma sociedade disciplinar, descrito por Foucault, explorado por capitalistas e sujeito ao estado, o sujeito de uma sociedade de desempenho se autoexplora com a convicção de que o faz voluntária e apaixonadamente, de que não é servo de ninguém, apenas busca realizar seus projetos (Han, 2018b).

 

 

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Elisângela Pezzutti

Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atua na área jornalística há mais de 25 anos, com experiência em reportagem, assessoria de imprensa e edição de textos.