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Não podemos normalizar a censura – nem aquela com a qual concordemos

Por: Pedro Leal

12/02/2016 - 16:02 - Atualizada em: 12/02/2016 - 16:08

Nesta quarta feira (10/02) a colunista do jornal britânico The Guardian Julie Bindel publicou um vídeo comentando uma questão muito atual e muito preocupante: a noção de que a censura está se tornando o novo “normal”. Como notado por Bindel – fundadora da ONG feminista Justice for Women – cada vez mais a noção de proibir fala por ser “ofensiva” tem se tornado não apenas aceitável, como elogiável entre estudantes e ativistas.

Ela não está errada: petições online pediram pela expulsão do pré-candidato a presidência dos EUA Donald Trump no Reino Unido. Protestos resultaram no cancelamento de palestras por Bindel e pelo biólogo Richard Dawkins, sob a alegação de serem, respectivamente, transfóbica e machista.  Em alguns casos, o pedido de banimento do orador é explicavel, como as petições contra palestras do americano Roosh V  – que faz apologia aberta do estupro. Em dezembro, o professor  Kenneth Zucker, um dos maiores especialistas do mundo em disforia de gênero, foi sumariamente demitido da clínica em trabalhava, sob a alegação de “ridicularizar a identidade sexual dos pacientes”. Em setembro, a ativista de direitos humanos Maryam Namazie foi banida da Universidade de Warwick por “incitar ódio”.

O pedido por censura não se restringe a pessoas vivas: Em 2012, a ONG Gherush 92 exigiu o banimento de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, por ser “machista, racista, anti-islâmica e anti-semita” – o livro foi escrito no século XIV. Ano passado, o crítico de cinema do New York Times exigiu o banimento do clássico “O Vento Levou” por racismo. Alguns desses casos são retirados de contexto: No Brasil, um pedido para adicionar notas explicativas quanto ao racismo de Monteiro Lobato foi distorcida como um pedido para “proibir o livro”.

Muitos desses pedidos são bem intencionados. A argumentação é que o discurso do orador a ser proibido é ofensivo, e portanto, não deveria ter “privilégios” de liberdade de expressão – resultando no meme repetido “liberdade de expressão não é liberdade de opressão”. No entanto, a censura não deixa de ser censura só por ser bem intencionada. Em sua gana para calar os “opressores”, esses ativistas progressistas ignoram que as tentativas de censura conservadoras também são “bem intencionadas”.

Tradicionalmente, a censura foi um recurso para manter o status quo: as obras censuradas eram as que iam contra a ordem vigente, os oradores proscritos os que desafiavam o senso comum. Não sem motivo, os mesmos grupos que hoje clamam por censura contra os opressores eram os que eram (e em muitos lugares, ainda são) censurados. Nos anos 50, no bloco capitalista os “pinkos” (simpatizantes do comunismo) foram perseguidos pelo senador Joseph McCarthy. No regime militar, o DOPS fez tudo o possível para calar os “subversivos”. Na China de Mao Zhedong, os “inimigos do partido” eram punidos rigorosamente, assim como o eram na USSR de Stalin.

O argumento para essas censuras era moralista: atentavam contra a moral pública, eram “degenerados”, “baderneiros” e outros argumentos do tipo. Assim como os progressistas auto-proclamados dizem que liberdade de expressão não é liberdade de opressão, os conservadores defendem sua censura alegando que “liberdade não é libertinagem”.

No sul dos EUA, na Rússia e em grande parte do Brasil esse tipo de mentalidade ainda é comum. Não são raros os projetos de lei e os movimentos “de gente de bem” pedindo pela proibição ou prisão de “imoralidades”, ou a criação de leis “contra a blasfêmia”. No Oriente Médio, esse tipo de legislação é a norma. Mas em tempos recentes, temos o confronto dessa mentalidade não com sua negação (a defesa da liberdade de expressão) mas seu reflexo: uma liberdade de expressão igualmente restrita.

Disso temos pedidos de censura e prisão por piadas contra religiões de matriz africana (por ser “blasfêmia” fazer isso) por parte de gente que não se envergonha em fazer piada com o cristianismo, e vice-versa. De ambos os lados, há o grito de que sua liberdade está sendo negada quando o mundo não atende seu pedido pela censura do inimigo. A incoerência é especialmente intensa contra discurso crítico: Após o Superbowl de 2016, conservadores nos EUA e no Canadá se mobilizaram contra a cantora Beyoncé Knowles por “fazer discurso contra a polícia”, alegando… violar a liberdade de expressão dos policiais..

Alguns ativistas e alguns conservadores vão além: querem não apenas a censura do ponto de vista discordante, mas a criminalização da ideia discordante e o julgamento prévio do orador. Não julgam e censuram pelo que o interlocutor diz, mas pelo que ele é: na Rússia, Gays são proíbidos de discursar publicamente. Dentro do território do Estado Islâmico, ser xiita é passível de pena de morte. Para alguns movimentos e opinadores, membros de certos grupos étnicos, gêneros e orientações sexuais não tem direito a fala (ou não podem ser criticados) por função do que são. Outros pedidos de censura não tem sequer a ver com fala: em novembro do ano passado, estudantes da universidade de Ottawa forçaram a universidade a cancelar aulas gratuítas de Ioga por “ser apropriação cultural” (ironicamente, grupos ultra conservadores se opunham as mesmas aulas por “ser coisa do diabo”). Na universidade de Oberlin, estudantes pediram o fechamento de um dos refeitórios pelo mesmo motivo: os pratos “étnicos” não eram “legítimos”.

Essa mentalidade que confunde o direito a crítica com exigir que algo seja proíbido e banido é um sinal da desonestidade e do empobrecimento do debate. Sem disposição para argumentar contra o ponto de vista oposto, optam por silenciá-lo. O fazem, tanto conservadores quanto progressistas, certos de sua retitude e da correção de seus argumentos, no entanto, jamais testam esses argumentos: para que discutir quando-se tem certeza? Mais lógico proibir o errado, ou assim pensam.

E nisso, ignoram que os avanços sociais e o combate a grupos de ódio depende da capacidade de detectar o discurso agressor. Que punição deve vir depois do crime (caso haja de fato discurso de ódio ou incitação ao crime, e não apenas “mas ele é racista”). Que condenar o discurso repulsivo as sombras da história apenas o fará crescer na escuridão, fora de vista, até explodir em ondas de violência (como as vistas por extremistas de direita na Alemanha).

Pior: calar as vozes ofensoras pouco faz para endereçar os problemas do qual elas são expressões. Sim, existem falas que devam ser punidas – depois que ditas. Afinal, como bem nos lembra o filósofo Karl Popper, tolerância ilimitada para com a intolerância só pode levar ao fim da tolerância e a supremacia dos intolerantes. Mas cercear a fala antes dela ser dita não é a solução.

Como também nos lembra o filósofo e cientista político Bertrand Russell, é necessário em uma democracia que as pessoas aprendam a tolerar terem seus sentimentos ultrajados .É compreensível a raiva dos excluídos ante a discurso que os ofendam, mas é necessário entender que para todo discurso, há quem se ofenda – e ao contrário do discurso repetido na era das redes sociais, ser o “oprimido” não torna sua ofensa mais válida, e tampouco ser o “opressor” faz dos seus sentimentos menos válidos.

*E temos outro problema: um culto demasiado a liberdade de expressão por parte de alguns, que negam aos autores o direito de editar seu próprio material antes do lançamento.

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Pedro Leal

Analista de mercado e mestre em jornalismo (universidades de Swansea, País de Gales, e Aarhus, Dinamarca).