É só o inimigo de meu inimigo. Por vezes demais o debate político nos meios acadêmicos e digitais brasileiros presume que porque *insira país ou grupo aqui* é inimigo dos EUA, ele seja aliado da esquerda progressista. O maior exemplo desse tipo de ignorância é a tendência trágica de alguns movimentos progressistas em defender Vladmir Putin – o conservador, expansionista, machista e homofóbico Putin, cujo governo criminalizou a mera menção a homossexualidade.
Antes, esse mesmo tipo de apologia impensada era dada em defesa a Mahmoud Ahmedinejad. E com frequência é dada para o governo de Bassar Al Assad e o do finado Muammar Al Ghadafi. As mesmas vozes que condenam (justamente) os abusos da PM teceram loas em defesa do uso de artilharia e bombardeiros contra manifestantes – a lógica? “Eram servos do Imperialismo”.
A “Primavera Árabe” passou de “revolta dos excluídos” e “grito da liberdade” para “imperialismo americano” e “extremismo islâmico” em um piscar de olhos, tão logo ficou claro que os governos desejados por parte dos manifestantes não eram o que direita ou esquerda queriam. Ao invés de assumirem o erro de avaliação, muitos escolheram negar que tivessem visto esse caráter quase messiânico que atribuíram ao fenômeno. Muito como ocorreu com as “caminhadas de junho”, em 2013 – passados três anos, lavaram-se as mãos, e ninguém mais atribuí ao seu lado a “heroica jornada” dos jovens brasileiros. Do contrário, para parte da esquerda, foi um protesto de “coxinhas”, e para parte da direita, foi “um bando de baderneiro por causa de 20 centavos”.
Mas ano passado essa mentalidade se manifestou de uma forma mais cruel, mais radical e mais tola: não poucos “militantes digitais” verbalizaram seu apoio ao Estado Islâmico, alegando que o grupo terrorista do Iraque e da Síria é “o grito dos oprimidos”. Da mesma maneira, defenderam (com afinco) o assassinato de cartunistas por “serem racistas”, como se arte ofensiva fosse um crime mais grave do que assassinato – e um assassinato visando intimidação e censura de outros cartunistas.
Ao mesmo tempo, defendiam que a França (responsável por menos de um décimo das missões de combate na Síria) é culpada de “terrorismo de estado” ao bombardear posições do EI. E que a Rússia era “heroica” e “mostrava como se faz” ao bombardear as mesmas posições (juntamente com posições mantidas por milicias anti-Assad). Subitamente, a mesma ação, com o mesmo alvo, era errada e certa – dependendo apenas de quem a fazia.
A direita sofre do mesmo vício. Elogiam a violência da polícia brasileira, mas condenam a mesma violência quando vem do governo venezuelano (ao passo de que uma parte significativa da esquerda faz o inverso, exaltando a “guarda nacional” da Venezuela). Criticam medidas sociais no Brasil, mas bajulam as mesmas medidas em países nórdicos. Defendem estado mínimo – mas querem policiamento máximo. Chamam o estado Israelense de “democracia modelo” enquanto ignoram o sofrimento em Gaza. Enquanto isso, parte da esquerda, a mesma que condena as charges da Charlie Hebdo como “racistas” e dignas de assassinato, chama um concurso de charges negando o holocausto, usando dos mesmos recursos anti-semitas que as caricaturas nazistas, de “liberdade de expressão”.
Na lógica do inimigo de meu inimigo é meu amigo, impera o duplipensar. A capacidade de acreditar em duas coisas contraditórias ao mesmo tempo, sem ver a contradição inerente entre elas. Assim, bombardear o EI pode ser “terrorismo” e “heroísmo” ao mesmo tempo, enquanto o EI pode ser simultaneamente herói (quando “ataca o coração do imperialismo ao matar centenas de civis) e vilão. Assim, a violência estatal é sempre errada, mas ao mesmo tempo é certa, justa e democrática quando usada contra “os agentes do imperialismo”. E assim um regime que criminaliza a homossexualidade pode ser “progressista e tolerante”, e um que bombardeia seus cidadãos pode ser “democrático”.