A violência “justa”

Por: Pedro Leal

25/08/2016 - 18:08 - Atualizada em: 25/08/2016 - 18:59

Assim como o bordão armamentista de “A única coisa que pode deter um cara mau com uma arma é um cara bom com uma arma”, o bordão recorrente de movimentos identitários, “Não confunda a raiva do oprimido com a violência do opressor”, sofre de uma falha fundamental.

Ambos presumem uma verdade absoluta quanto a quem é o “cara bom” e o “cara mau”; como frases prontas, ignoram uma cruel realidade: que todos se veem como os heróis de suas narrativas. Cada cara mau com uma arma se vê como um cara bom. Cada extremista, vigilante, miliciano e terrorista, vê suas ações como justas e corretas, respostas merecidas à opressão que ele e seu grupo enfrentam.

E isso vale para praticamente todo extremista, pregador do ódio, fanático e terrorista que há. Para o Estado Islâmico, suas ações são respostas merecidas à ameaça que os infiéis representam aos “puros”, assim como acontece com a Al Qaeda e o Boko Haram. Para o Ira, a morte de civis que nada tinham a ver com a presença britânica na Irlanda eram perdas aceitáveis em nome da “raiva dos oprimidos”. A RUF em Serra Leoa, a Irgun no antigo território da palestina, os terroristas responsáveis pelo cerco à escola de Beslan; todos se veem como oprimidos lutando por um mundo melhor.

Gavin Long, o assassino de policiais de Baton Rouge, julgava que suas ações eram justas e merecidas, pois miravam em seus opressores. O mesmo, no entanto, vale para o terrorista norueguês Anders Brevihk: em sua percepção, seus crimes eram a única maneira de salvar a Europa de um terrível estado tirânico que a ameaçava. Extremistas de toda estirpe se veem como bravos guerreiros contra os algozes de seu povo.

Até os nazistas e a KKK se veem como nobres vítimas golpeando seus agressores, mesmo com a realidade depondo contra sua percepção distorcida e odiosa. E tragicamente, o mesmo discurso dos nazistas é frequentemente defendido por assim ditos progressistas quando saem da boca de outros grupos étnicos: a ideia de que “os judeus” sejam responsáveis por seu sofrimento. O bordão pronto é frequentemente repetido (ou parafraseado) quando se trata do discurso genocida do Hamas – enquanto frases similares são usadas para justificar o discurso igualmente genocida da direita Israelense.

A frase pronta é uma forma falaciosa de evitar discussões sobre a ética das ações “contra o opressor”. Em termos práticos, equivale a dizer que X está certo por que está; que aquele ato se justifica não pelo ato em si, mas por quem o executa. Significa dizer que certas formas de violência são corretas e justas, por um padrão absoluto que dispensa justificativas – enquanto ignora que o outro lado pensa exatamente o mesmo de seus atos de violência: que eles são corretos pois são reações contra o inimigo.

Não raro o discurso e formas similares são usadas para justificar atos de violência que não tem nada de político; violências individuais e cotidianas, ou atrozes, justificadas como sendo “reações a opressão”, mitificadas como tal. Como os recorrentes elogios à grosseria na copa, a deificação de uma assassina por certos grupos na internet, ou a romantização do vigilantismo.

A paixão pela violência “justa” (sem jamais justificar por que ela seria justa: é justa por que seu agente é vítima, e sua vítima é o verdadeiro agressor) tem chego a níveis preocupantes: não faltam articulistas, blogueiros e comentaristas que se indignem com a mera sugestão de não violência. Como se a violência “revolucionária” devesse ser louvada e a não violência devesse ser demonizada.

As consequências da violência irrefreável – a escalada inevitável da violência conforme os opressores (reais ou imaginados) passam a reagir, o custo em vidas resultando de suas formas mais extremas e o admirável mundo novo que resultará quando essa violência chegar ao seu ápice são deixados de lado. A possibilidade de que a “raiva dos oprimidos” se converta na violência do opressor (ou a seja desde o começo, como ocorre com muitos grupos extremistas) não lhes passa pela cabeça – tampouco o que fariam para evitar um levante similar contra eles mesmos.

Existem situações em que a violência é justa e é uma resposta aceitável. Mas essas situações não se definem pela identidade de quem a executa, tampouco são absolutos, imutáveis. A quantidade de pessoas que dizem primar por direitos humanos que acham que violência se responde com mais violência, sem fim, sem perdão, e sem misericórdia (tal qual acontece, de ambos os lados, entre Israel e Palestina – a falta de poder da Palestina não servindo de forma alguma como desculpa para seus ataques, nem estes servindo de justificativa para os ataques da IDF) deveria nos servir de alerta: Há entre os progressistas uma disposição igual para o ódio e a violência àquela entre os conservadores – temperada pela certeza de que seus atos são “justos” e “servem ao bem maior”.