O pão de trigo impartível

Por: Nelson Luiz Pereira

05/11/2022 - 05:11

Era 1972. Minha cabeça ainda estava pelada por conta do 7 de setembro do dia anterior. Dentro da sala de aula meu ridículo ‘catuto’ seria notado por Glorinha. Aquela angustia me deixou confuso. Usaria meu chapéu cafona de nylon, ou simularia uma dor de barriga para não ir à escola? Se optasse pelo chapéu, possivelmente teria que tirá-lo ao entrar na sala.

Por outro lado, se simulasse uma dor de barriga, no dia seguinte eu estaria curado devido a Emulsão Scott da mamãe e o cabelo ainda nem teria crescido. Decidi enfrentar a situação. Me auto iludi de que aquele amor ‘infanto platônico’ que eu nutria por ela, tinha ido embora com meu cabelo.

Então mamãe preparou o lanche. Duas fatias de pão de fubá e inhame, com banha de porco ao meio. Embrulhou em papel verde da vendinha, recobriu com plástico e acondicionou dentro de minha pasta de couro, junto aos cadernos encapados com o mesmo papel da vendinha. Ao chegar no portão da escola, avistei a uns 50 metros, aquela inconfundível Gordini amarela se aproximando.

Senti meu coração acelerar. Apressei o passo para, ilusoriamente, me refugiar dentro da sala. Eu era o único acomodado em meu reinante silêncio, tendo a porta como primordial foco de meu ansioso olhar. Glorinha entrou e eu a contemplei durante todo seu trajeto.

Quando tomou seu lugar, passei a imaginar que a conversa dela com a amiga Cici, seguida de risos, tinha a ver com meu coco pelado. Subitamente, ouvi o som mais arrebatador da vida. Era meu nome pronunciado por ela.

– Nelson, você tem borracha de apagar?

– Tenho sim, tome, você pode ficar com ela, eu tenho outra.

– Puxa, obrigado, você é um fofo.

Nunca esqueci aquele sorriso angelical. Fiquei atordoado com a espontaneidade dela, no entanto, a diferença de condição social que nos separava, atormentou, de imediato, meu imaginário.

Em meu conceito prematuro, eu era um descalço, que comia pão de inhame com banha, no lanche (obrigado Santa mamãe). Bateu o sinal do recreio. Por vergonha, deixei meu bucólico sanduba na pasta e segui os passos de Pedrinho.

Ele sentou-se num banco do pátio e retirou de sua lancheira um duplo pão doce de trigo e a garrafinha de capilé de groselha. Glorinha, na outra extremidade do pátio, desembrulhou de um guardanapo de pano branco, bordado com flores coloridas, uma massinha doce de trigo.

Bolei um plano que me colocaria em nível de igualdade naquele momento do lanche. Pediria ao Pedrinho um pedaço daquele seu pão duplo, que certamente sobraria. Me deslocaria para perto de Glorinha fingindo despercebido. Faria com que ela me notasse comendo aquele raríssimo pão de trigo.

Se preciso fosse, deixaria cair, propositalmente, no chão.

– Oi Pedrinho, hoje eu não trouxe lanche. Você me dá um pedaço desse seu pão?

– Não posso Nelson. Minha mãe me disse pra eu não repartir o lanche com ninguém.

Meu contingencial plano com Glorinha tinha fracassado, mas, aquele pão impartível potencializou minha fome de viver.